ARTIGOS | Postado no dia: 10 setembro, 2025
STJ e a responsabilidade patrimonial: Quando o amor vira dívida

A decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), que permite a utilização de bens da atual companheira para satisfazer débito alimentar em atraso, repercutiu de maneira significativa no meio jurídico. Não se trata apenas de uma inovação interpretativa, mas de um potencial abalo aos fundamentos do Direito Civil, sobretudo no que tange à segurança jurídica e à responsabilidade patrimonial.
O cerne da discussão não se resume ao inadimplemento da obrigação alimentar, cuja relevância é inconteste. A controvérsia reside na extensão da responsabilidade a terceiros que, embora mantenham relação afetiva com o devedor, não participaram da formação da dívida, tampouco possuem vínculo jurídico que justifique tal responsabilização.
A pensão alimentícia, enquanto obrigação legal de natureza alimentar e crédito privilegiado, deve ser executada nos limites da legalidade. O artigo 591 do Código de Processo Civil é taxativo ao dispor:
“O devedor responde com seus bens para o cumprimento de suas obrigações, salvo os casos expressos em lei.”
Neste contexto, responsabilizar a atual companheira do devedor, especialmente quando não há regime de comunhão de bens ou qualquer comprovação de sua participação na dívida, revela-se uma extrapolação preocupante do conceito de solidariedade jurídica.
A decisão em tela inaugura um precedente que pode ensejar efeitos perversos. Ao admitir a constrição patrimonial de terceiro não participante da obrigação, cria-se um cenário de confusão patrimonial artificial, sem respaldo legal expresso e em violação à individualidade jurídica das partes envolvidas.
Tal prática afronta o direito de propriedade, assegurado pelo artigo 5º, inciso XXII, da Constituição Federal, além de comprometer a liberdade nas relações afetivas, que passam a representar risco jurídico e patrimonial. A informalidade das uniões, por sua vez, torna ainda mais nebulosa a linha divisória entre os patrimônios individuais e o do casal.
A responsabilização por dívidas no âmbito das relações conjugais está diretamente condicionada ao regime de bens adotado. Conforme a legislação civil:
- Na comunhão parcial ou universal de bens, o patrimônio comum pode ser alcançado por dívidas contraídas durante a convivência, desde que revertam em benefício da entidade familiar.
- Na separação total de bens, não há qualquer comunicação patrimonial, salvo em casos comprovados de fraude ou simulação (Brasil, 2002).
Dessa forma, responsabilizar o patrimônio exclusivo de companheiro(a) alheio(a) à dívida, fora dessas hipóteses legais, constitui violação aos princípios fundamentais do Direito Civil, notadamente à autonomia patrimonial e à individualização dos sujeitos de direito.
O Direito de Família, ao longo das últimas décadas, ampliou sua compreensão sobre as formas de afeto, convivência e solidariedade. Contudo, é imprescindível distinguir entre a solidariedade de ordem moral e a obrigação legal.
O dever de prestar alimentos é personalíssimo, intransferível e vinculado à relação jurídica de origem. A expansão dessa obrigação a terceiros que não integraram a relação originária compromete não apenas o equilíbrio das relações privadas, mas o próprio conceito de justiça.
Se consolidado esse entendimento jurisprudencial, haverá uma indevida flexibilização da responsabilidade civil, colocando em risco as garantias fundamentais e desestimulando relações afetivas legítimas.
A decisão do STJ reacende importantes debates jurídicos e sociais, entre os quais destacam-se:
- O papel do Poder Judiciário na proteção da dignidade dos alimentandos sem sacrificar garantias constitucionais de terceiros;
- A necessidade de distinção clara entre vínculos afetivos e obrigações jurídicas;
- O risco de decisões casuísticas comprometerem a previsibilidade e a coerência do sistema jurídico.
Mais do que nunca, impõe-se uma abordagem cautelosa e tecnicamente fundamentada. O afeto, por mais nobre que seja, não pode converter-se em título executivo. O patrimônio de terceiro, por sua vez, não pode ser o caminho mais curto para sanar dívidas pessoais, sob pena de comprometimento da própria lógica do Estado de Direito.