ARTIGOS | Postado no dia: 15 setembro, 2025
SEPARAÇÃO DE BENS E DIREITO SUCESSÓRIO: A PERMANÊNCIA DO VÍNCULO CONJUGAL NA HERANÇA

Por muito tempo, acreditou-se que o regime de separação convencional de bens, aquele escolhido livremente pelos cônjuges antes do casamento, significava uma espécie de blindagem patrimonial entre as partes. Em outras palavras, cada um com seu patrimônio, sem comunicação durante o casamento e, supostamente, também na sucessão. No entanto, decisões recentes do Judiciário têm questionado essa lógica, especialmente no que se refere ao direito do cônjuge sobrevivente à herança.
Em um dos casos que ganharam repercussão recentemente, a Justiça reconheceu que, mesmo no regime de separação convencional de bens, o cônjuge viúvo não pode ser automaticamente excluído da herança, especialmente quando não houver testamento ou quando existirem filhos apenas de um dos lados. A justificativa vai além da letra fria da lei e mergulha nos princípios constitucionais que regem o Direito de Família e das Sucessões.
Essa visão mais abrangente parte do entendimento de que o casamento não é apenas um contrato patrimonial, mas uma instituição social e afetiva que merece proteção jurídica até o fim da vida e, em certa medida, até depois dela. A dignidade da pessoa humana, a proteção da família e a função social do vínculo conjugal são fundamentos que vêm sendo valorizados pelo Judiciário na hora de decidir questões sucessórias.
O artigo 1.829 do Código Civil estabelece que o cônjuge sobrevivente pode ser herdeiro, mas seu lugar na ordem de vocação hereditária varia conforme o regime de bens. No caso da separação total, convencional ou obrigatória, havia interpretação consolidada de que o cônjuge estaria excluído da herança, salvo se não houvesse outros herdeiros.
Contudo, esse entendimento vem sendo relativizado por decisões que colocam os princípios constitucionais acima da técnica patrimonial. O casamento, enquanto realidade afetiva e existencial, não pode ser ignorado apenas porque as partes optaram por separar seus bens. O afeto, a convivência e a solidariedade construída ao longo dos anos não desaparecem com cláusulas contratuais.
Essa mudança de perspectiva tem efeitos práticos relevantes. Casais que escolheram a separação de bens como forma de organização financeira ou proteção patrimonial podem ser surpreendidos na hora da sucessão. Em muitos casos, a intenção era clara: manter independência patrimonial e evitar conflitos entre herdeiros e o cônjuge supérstite. Mas a Justiça pode entender que, mesmo diante dessa escolha, o cônjuge tem direito à herança como herdeiro necessário.
Diante disso, torna-se ainda mais importante o planejamento sucessório consciente e detalhado, com a elaboração de testamentos, pactos antenupciais específicos e orientação jurídica qualificada. Não basta escolher um regime de bens, é preciso entender seus efeitos e suas limitações no âmbito sucessório.
Esse novo entendimento jurisprudencial também levanta um paradoxo. Ao buscar proteger o afeto e a dignidade do cônjuge sobrevivente, a Justiça pode estar fragilizando a segurança jurídica dos regimes de bens. Se mesmo quem opta pela separação total pode acabar herdando, onde está a efetividade da escolha feita em vida?
Esse é o dilema entre o direito posto e o direito justo. Entre respeitar uma convenção patrimonial feita por pessoas capazes e conscientes ou reconhecer a realidade afetiva e social de um casamento que, embora sem comunhão de bens, existiu como núcleo familiar.
A separação de bens não é, hoje, uma blindagem sucessória automática. O Judiciário tem sinalizado que o casamento, mesmo com autonomia patrimonial, continua a ser um vínculo jurídico relevante até a morte, e que não pode ser tratado como se fosse uma mera sociedade comercial.
Para aqueles que desejam organizar seu patrimônio com clareza e segurança, a mensagem é clara: regime de bens e herança não são temas separados. Devem ser pensados juntos, com planejamento adequado, testamento bem estruturado e orientação jurídica personalizada. Afinal, a sucessão começa em vida, e quem não a organiza, corre o risco de deixar ao Judiciário decisões que poderiam ter sido suas.