ARTIGOS | Postado no dia: 1 agosto, 2025

A PATERNIDADE SOCIOAFETIVA E A RETIFICAÇÃO DE REGISTRO CIVIL APÓS EXAME DE DNA NEGATIVO

Inicialmente, cumpre salientar que a paternidade socioafetiva constitui uma forma de estabelecimento da filiação que se fundamenta na convivência familiar, na afeição e no reconhecimento mútuo entre pai e filho, independentemente da existência de vínculo biológico.

Essa forma de filiação decorre da função social da parentalidade e está diretamente relacionada aos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF/88), do melhor interesse da criança (art. 227, CF/88) e da afetividade como elemento fundante das relações familiares.

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
III – a dignidade da pessoa humana;
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Dessa forma, a doutrina moderna do Direito das Famílias reconhece a parentalidade como fenômeno plural, que abrange a filiação biológica, civil (por adoção) e também a socioafetiva.

A afetividade, antes considerada um mero valor moral, passou a ser juridicamente relevante, assumindo status de princípio jurídico implícito, especialmente a partir do advento da Constituição Federal de 1988 e da evolução jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal.

A parentalidade socioafetiva representa, portanto, o reconhecimento do pai ou da mãe de criação, aquele que assume, voluntária e publicamente, o papel de genitor, estabelecendo com o filho laços afetivos contínuos e duradouros.

O caso julgado: exame de DNA e pedido de retificação de registro Civil

Nesse sentido, o Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o Recurso Especial nº 1.873.495, analisou uma situação delicada e cada vez mais comum no Direito de Família: um homem, que havia reconhecido voluntariamente uma criança como seu filho e constava como pai no registro de nascimento, anos depois realizou um exame de DNA que comprovou a inexistência de vínculo biológico entre eles.

Com base nesse resultado, ele pediu à Justiça para cancelar sua paternidade e retirar seu nome do registro civil.

Logo, a relatora, Ministra Nancy Andrighi, ressaltou que a verdade biológica, embora relevante, não é absoluta, e que a filiação registral só pode ser desconstituída judicialmente quando ausente o vínculo socioafetivo.

Segundo a Ministra, a mera ausência de consanguinidade não basta para invalidar o ato jurídico do reconhecimento voluntário da paternidade, conforme dispõe o artigo 1.604 do Código Civil.

Art. 1.604. Ninguém pode vindicar estado contrário ao que resulta do registro de nascimento, salvo provando-se erro ou falsidade do registro.

É necessário demonstrar vício de consentimento ou ausência de relação afetiva efetiva.

A Corte concluiu, portanto, que, se existente uma convivência familiar pública, contínua e duradoura, e se formada a relação paterno-filial ao longo do tempo, a paternidade socioafetiva deve prevalecer, impedindo-se a exclusão do nome do pai registral do assento de nascimento.

A Constituição Federal, em seu artigo 227, § 6º, é clara ao determinar que os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos, sendo vedadas quaisquer designações discriminatórias.

Tal norma assegura a isonomia entre os filhos, reforçando que o afeto, e não apenas o sangue, pode ser elemento legitimador da relação de filiação.

Além disso, o artigo 1.593 do Código Civil estabelece que “o parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem”. Essa “outra origem” vem sendo interpretada pelo STJ como fundamento para a filiação socioafetiva.

Já o artigo 1.604, também do Código Civil, prevê que o reconhecimento de filhos é irrevogável, exceto se viciado (erro, dolo, coação etc.), o que exige análise de caso concreto.

A jurisprudência tem ainda reforçado o entendimento de que o reconhecimento voluntário de paternidade, mesmo que desacompanhado de vínculo genético, gera efeitos jurídicos plenos, sobretudo se estiver aliado a uma convivência familiar real e afetiva.

Assim, a possibilidade de retificação do registro civil deve ser excepcional, e não automática.

A decisão do STJ se ancora, especialmente, em três pilares constitucionais:

  • Princípio da Dignidade da Pessoa Humana (art. 1º, III, CF): fundamento essencial para a proteção das relações afetivas genuínas, confere proteção à personalidade e identidade da criança ou adolescente.
  • Princípio do Melhor Interesse da Criança e do Adolescente (art. 227, CF; art. 4º e 5º, ECA): exige que a interpretação das normas e decisões judiciais priorize a proteção integral da infância, garantindo-lhe um ambiente estável, afetuoso e seguro.
  • Princípio da Segurança Jurídica: impede que relações familiares sejam desconstituídas arbitrariamente, exigindo estabilidade nas relações parentais, sobretudo quando fundadas na convivência afetiva e no reconhecimento público da paternidade.

A decisão do STJ no caso em comento, REsp 1.873.495, representa um avanço na consolidação da paternidade socioafetiva no Direito de Família brasileiro.

Ao condicionar a retificação do registro civil à inexistência de vínculo afetivo, a Corte reafirma que a filiação não pode ser tratada como um contrato com cláusula de revogação unilateral, mas sim como uma relação humana, afetiva e jurídica revestida de proteção constitucional.

O Direito, assim, afasta-se da rigidez biológica e aproxima-se da realidade social das famílias contemporâneas.

Em consonância com os princípios constitucionais e com a doutrina da proteção integral da criança, o Judiciário reafirma seu compromisso com uma leitura humanista e protetiva da parentalidade, onde o afeto, a convivência e a responsabilidade pesam mais que o DNA.