ARTIGOS | Postado no dia: 1 agosto, 2025
Decisão Inédita: Justiça Federal de Santa Catarina Reconhece Trabalho Rural a Partir dos 8 Anos

O reconhecimento do tempo de serviço rural tem papel decisivo na concessão de aposentadorias, seja para o cumprimento dos requisitos mínimos de tempo de contribuição, seja para a revisão do valor do benefício, com possível aumento da renda mensal do segurado.
Esse tempo pode ser validado em favor de diferentes categorias de trabalhadores, como os segurados especiais, empregados rurais com vínculo formal e contribuintes individuais. O presente texto tem como foco o segurado especial — categoria que engloba pequenos produtores, pescadores artesanais, seringueiros e outros trabalhadores que atuam em regime de economia familiar, sem a contratação de empregados permanentes.
Esse regime de economia familiar, embora nem sempre bem compreendido, caracteriza-se pela participação direta dos membros da família nas atividades produtivas do meio rural, sendo a produção realizada de forma coletiva e destinada, principalmente, à subsistência do grupo familiar. Não há vínculo formal de emprego, mas sim uma divisão orgânica das tarefas entre pais, filhos e demais membros do núcleo familiar.
Nesse contexto, é comum que todos os integrantes da família, inclusive as crianças, participem das lides do campo desde muito cedo. O trabalho infantil rural, embora socialmente invisibilizado, constitui uma realidade histórica e persistente entre as famílias do campo. É frequente o relato de segurados que iniciaram suas atividades laborais com apenas 6, 7 ou 8 anos de idade, ajudando seus pais na lavoura, muitas vezes sem acesso regular à escola ou conciliando os estudos com o trabalho diário no campo.
A infância dessas crianças foi marcada por jornadas exaustivas, onde o tempo para brincar e estudar era substituído pelas exigências do trabalho rural e das tarefas domésticas.
Apesar dessa realidade, o INSS ainda adota a idade mínima de 12 anos para fins de reconhecimento do labor rural, criando um marco legal que não reflete as condições vividas pelos trabalhadores do campo.
O Poder Judiciário, por sua vez, tem demonstrado maior sensibilidade à realidade social desses segurados. Diversas decisões, proferidas por tribunais como o Superior Tribunal de Justiça (STJ), o Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) e a Turma Nacional de Uniformização (TNU)[¹], já reconheceram a possibilidade de cômputo do tempo de serviço rural anterior aos 12 anos de idade.
Aliás, não apenas as instâncias superiores, mas também os juízos de primeiro grau têm reconhecido o exercício de atividade rural em idade inferior a 12 anos, alinhando-se aos entendimentos já firmados pelos tribunais superiores mencionados.
Contudo, os processos que tramitam nos Juizados Especiais ainda enfrentam entraves, uma vez que as Turmas Recursais, responsáveis pelo julgamento dos recursos nessas ações, frequentemente reformam sentenças favoráveis sob o argumento de que não restou comprovado que o trabalho da criança era indispensável à subsistência do núcleo familiar.
Entretanto, esse cenário começa a apresentar sinais de mudança!
Em decisão recente, a Turma Recursal de Santa Catarina manteve sentença que reconheceu o exercício de atividade rural a partir dos 8 anos de idade. Trata-se do processo de n° 5006421-04.2022.4.04.7209, no qual o segurado ajuizou ação de revisão de aposentadoria, buscando o reconhecimento do período rural compreendido entre os 8 e 12 anos, já que o período posterior já havia sido reconhecido administrativamente.
Na instrução do processo, foi realizada audiência com oitiva de testemunhas que confirmaram o trabalho do autor na lavoura desde tenra idade. Relataram que o segurado, ao lado da família, desempenhava atividades essenciais para a subsistência do grupo familiar, e que sua ausência no trabalho rural geraria prejuízos à manutenção da casa.
Apesar da prova robusta, o INSS interpôs recurso inominado, buscando a reforma da sentença e a exclusão do período rural reconhecido. No entanto, de forma acertada, a 1ª Turma Recursal de Santa Catarina, ao julgar os autos, decidiu por unanimidade negar provimento ao recurso.
O relator, juiz Julio Guilherme Berezoski Schattschneider, manteve a sentença por seus próprios fundamentos e destacou a aplicação do Tema 451 do STF [²], além de precedentes da própria Turma, como o processo n° 5003019-34.2021.4.04.7213. Os honorários advocatícios foram fixados em 10% sobre o valor da condenação, limitados ao equivalente a um salário mínimo, conforme a prática usual nos Juizados Especiais.
Apesar de ainda caber recurso extraordinário ou pedido de uniformização por parte do INSS, a decisão representa um importante avanço e pode sinalizar uma mudança de paradigma no âmbito das Turmas Recursais, aproximando-as das diretrizes já consolidadas pelos tribunais superiores.
Essa medida fortalece a justiça social, especialmente em relação aos trabalhadores rurais cuja trajetória de vida é marcada pelo esforço desde a infância, muitas vezes em condições precárias e sem proteção formal.
O reconhecimento da atividade rural, independentemente da idade, desde que comprovado o exercício efetivo da função, é fundamental para garantir o direito à aposentadoria e ao cômputo do tempo de contribuição. Espera-se, com isso, que decisões como essa incentivem uma uniformização mais célere, justa e sensível por parte das Turmas Recursais, em respeito à segurança jurídica, à isonomia e à efetividade dos direitos previdenciários.
[¹] Não afronta a exigência constitucional de motivação dos atos decisórios a decisão de Turma Recursal de Juizados Especiais que, em consonância com a Lei 9.099/1995, adota como razões de decidir os fundamentos contidos na sentença recorrida.(https://portal.stf.jus.br/jurisprudenciaRepercussao/verAndamentoProcesso.asp?incidente=4035218&numeroProcesso=635729&classeProcesso=RE&numeroTema=451).
[²] É possível o cômputo do tempo de serviço rural exercido por pessoa com idade inferior a 12 (doze) anos na época da prestação do labor campesino (https://www.cjf.jus.br/cjf/corregedoria-da-justica-federal/turma-nacional-de-uniformizacao/temas-representativos/tema-219).